Artigo | Líria Varne, ou onde sonho e realidade colidem

 

 Carlos Martins de Jesus, PhD

Pesquisador de pós-doutorado FCT (Portugal)

carlosamjesus@gmail.com

A primeira vez que encontrámos Líria foi numa cidade nublada e sempre cinza, nos idos de abril de 2013. Mas a cidade que as telas da artista retratam não se pintava com os mesmos traços que, mais tarde, vieram a pintar aquela Berlin nublada e cinza, quando o inverno estava próximo de chegar ao fim – tomem os exemplos de Unpolished Girl in S. Bahn e de Kartoffelsalat, ambas pinturas de 2013, o resultado de uma artística temporada da pintora em Berlin. A cidade retratada, ainda cinza e nublada, é afinal São Paulo: lugar de nascimento e residência da artista. Estamos agora considerando em especial a série de pinturas Fragmentos de uma Subjetividade Urbana. Sobre elas, a artista afirma: “Eu pinto as diferenças e o que me incomoda em São Paulo, minha cidade. Este sempre foi o meu tema principal”, a partir de uma pesquisa começada em 1997. Não sem motivos, as telas sobre Berlin foram incluídas em uma série diferente, apelidada Sonho e Realidade.

 

O cinza é uma das cores principais usadas nesses espaços, uma das principais impressões resultantes das representações de diversos lugares simbólicos de São Paulo; o cinza é a perturbadora cor principal no cemitério que ocupa toda a tela em Quem morre sorri, de 1997. A maioria desses espaços é penetrada pela violência de fortes traços em roxo, provavelmente a característica mais identificável dos trabalhos de Líria. Frequentemente representam a chuva, violenta ou suave, tanto submergindo o caráter individual das pinturas quanto ameaçando-as com a promessa de uma vida cotidiana sempre insegura e quase desumana (por exemplo, Subviver vs. Choveu em SP, ambas pinturas de 2012). Tudo isso é, certamente, bastante significativo em um estilo que combina, de forma bastante forte, o uso expressionista da cor com reminiscências do cubismo da última fase.

Nosso verdadeiro mote para escrever estas linhas foi no entanto um par muito especial de pinturas: Chuva real e Chuva sonho, ambas recentes, de 2013. Em ambas, a mesmíssima figura feminina, com sua grande e elegante sombrinha vermelha. Mas apenas ela, fora quaisquer coincidências intencionais de traços, é o aspecto comum nesses quadros. A chuva, no primeiro deles, não mais cai do céu – ou, ao menos, não é isso que importa; ela tomou conta de todo o espaço do chão, o espaço humano; nela flutua o lixo de uma sociedade inteira; a sombrinha virada, boiando no fundo da tela, nos lembra quantos não conseguiram sobreviver a tal chuva que, provavelmente, já caía dos céus por muitos dias. Enquanto isso, o mesmo espaço, no segundo quadro, é ocupado por cores terrosas, devolvendo assim o espaço humano (um espaço ainda caótico?) aos seus legítimos donos. O céu, chuvoso com certeza, é agora azul, o que permite olhar para o alto e sonhar. Um contraste como esse também pode ser visto em um outro par de quadros, também de 2013: Aconteceu em Paris e Triste em Paris, ambos integrantes da mesma série Sonho e Realidade.

74- Chuva real - Acrílico sobre tela - 40x20cm - 2013©
74- Chuva real – Acrílico sobre tela – 40x20cm – 2013
75- Chuva Sonho - Acrílico sobre tela - 40x20cm - 2013©
75- Chuva Sonho – Técnica Mista – 40x20cm – 2013

Concluamos. Em ambas as pinturas – dizíamos – a mesmíssima figura feminina, com sua grande e elegante sombrinha vermelha. Ela, a menina do vestido amarelo florido, que qualquer um poderia interpretar como representação biográfica da pintora; ela é, em ambos os cenários, a própria representação do sonho, da vontade inquebrantável de olhar para cima e para frente. Aquela menina (somente agora percebemos) é, realmente, a artista, a própria Líria Varne – a incansável pintora que a cada dia busca o enriquecimento e o desenvolvimento artístico de seu trabalho pictórico.

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