Artigo | O fabuloso mundo de Líria Varne

O fabuloso mundo de Líria Varne

Claudio Castro Filho[1]

21- Subviver - Acrílico sobre tela - 50x40cm - 2012©.jpg
Obra selecionada para o 1º Salão de Outono da América França-Brasil

 [Líria Varne, Subviver em São Paulo, acrílico s/ tela, 40 x 50 cm, 2012]

               Uma das mais curiosas sínteses já feitas da história da pintura foi, sem dúvida, a de Heinrich Wölfflin[2], ao passar em revista o repertório desta pinacoteca chamada Europa sob o prisma da dialética ´linear` versus ´pictórico`. Contrariando teses históricas de raiz sociológica, Wölfflin compreendeu as mudanças de estilo ao longo da história da arte a partir da tendência individual que cada grande mestre expressou na sua estética plástica, ou seja, uns tendo a linha como eixo predominante da composição, outros tendo a cor como elemento distintivo. Nesse sentido, o investimento exaustivo de Dürer no desenho como elemento organizador do quadro faria dele um artista do linear, ao passo que Rembrandt, ao conferir às suas composições um cariz mais volumétrico e atmosférico, seria um mestre do pictórico.

A tese de Wölfflin soa-nos, ainda hoje, moderninha, e por duas razões: primeiro, porque devolve ao artista a razão de ser do estilo, ao entender a expressão particular como aquilo que constitui uma escola artística; segundo, porque define os elementos-chave que constituem a materialidade e o modus operandi da pintura. O problema é que, com as vanguardas (bem como com as leituras pós-históricas da arte ocidental), surge a questão da impossibilidade de compreender o fenômeno artístico, de forma mais global, a partir dos estilos de época, já que a arte se rebela contra os programas acadêmicos e a representação do mundo, preferindo, em vez disso, a ruptura com a tradição e a intervenção sobre o real. Pintores como Cézanne, Van Gogh, Picasso ou, no caso brasileiro, Tarsila e Malfatti transitam, inconformados, por distintas poéticas: exploram o uso insólito e material da cor e dão à linha ares de metalinguagem, já que fazem dela um elemento explicitador da verdade do quadro.

Depois da morte da pintura proclamada pelo expressionismo abstrato e do luto preenchido pelos diversos conceitualismos do pós-guerra, a arte contemporânea vem, há pelo menos três décadas, se esforçando por fazer as pazes com o óleo sobre tela. Do ponto de vista da expressão internacional da arte brasileira, é interessante perceber que o lugar do Brasil no mapa mundi da arte, embora consolidado por um movimento de cariz conceitual como foi o neo-concretismo, cada vez mais se defina pela singularidade de pintores que destoam de um discurso estético em uníssono. Não seria exagero afirmar que a pintura brasileira vive, hoje, uma assinalável nostalgia das vanguardas históricas, já que parece aproveitar-se do estereótipo de “país sem tradição” para assimilar (ou romper com) múltiplas tradições possíveis. É neste limiar entre cercar-se e alhear-se do legado tradicional que se situa o trabalho da pintora paulistana Líria Varne.

A remissão a Wölfflin como ponto de partida para uma leitura da obra de Varne não é casualidade: a pintura da paulistana apoia-se, sobretudo, numa exacerbação dos dois elementos estruturais da sua arte de eleição, quais sejam, o desenho e a cor. Uma compreensão prioritariamente gráfica do espaço pictórico marca, desde os seus primeiros quadros (por volta de 1997), sua estética. Nesse sentido, a pintura de Líria Varne é, em essência, uma pintura urbana, como se transpusesse, para a escala reduzida da tela, o cariz intervencionista inerente à arte de rua. O diálogo com o real estará, portanto, marcado por um apelo, afetivo e cognitivo, lançado ao espectador. A organicidade gráfica da pintura de Varne convoca, por um lado, a uma apreensão imediata da sua “mensagem” plástica, feita à medida dos sistemas óticos contemporâneos, já adestrados por uma excessiva provocação visual. Por outro, à medida que o olhar atravessa a assinatura formal do quadro, revelam-se novas camadas de leitura, marcadas por uma forte poetização da vida coletiva e por uma visada insolitamente política sobre o universo  quotidiano.

57- Choveu - Acrílico sobre tela - 20x20cm - 2012©

 [Líria Varne, Chuva em São Paulo II, acrílico s/ canvas board, 20 x 20 cm, 2012]

 

               O caráter figurativo da sua poética situa-a, assim, num interessante limiar entre o graffiti e a pop art, ao mesmo tempo em que a sua nostalgia das primeiras vanguardas (patente, sobretudo, no traço de gênese cubista e na arbitrariedade expressionista com que dá uso à cor) desconstrói a figura em novas propostas de apreensão do real, marcadas pela tensão do eu com o espaço e o mundo. O objeto representado desloca-se da realidade para pôr em evidência a verdade bidimensional da tela, gerando um notável desconforto entre figura e fundo, metáfora de uma total inadequação entre o sujeito e o seu entorno imediato. Daí o cariz político da pintura de Varne, que tende a acentuar-se na sua produção mais recente. Nesse contexto, a figura humana remeterá irremediavelmente à voz dos proscritos, aos corpos híbridos e desgastados pelo trabalho, às expressões cinzeladas, marcadas pelo inquietante desajuste entre o homem e a cidade. O espaço urbano, sintetizado em geral na “dura poesia concreta” de uma idealizada São Paulo, serve de cenário para figuras de aparência desconcertante, que clamam por deixar a invisibilidade dos subúrbios e querem tomar de assalto a parte que lhes cabe nos centros de poder e nos espaços consagrados pela folclorização turística. A série Chuva em São Paulo (dois acrílicos sobre canvas board, de 2012), exposta, em Berlim, na QuadriArt de 2013, é exemplar desse constante jogo entre experimentalismo estético e denúncia política que conforma o olhar mais recente da pintora.

Num momento em que os circuitos artísticos oficiais voltam a apropriar-se das estéticas periféricas, o olhar de Líria Varne sobre os estereótipos de uma contestável brasilidade não recusará a expressão de um suposto exotismo tropical, mas submeterá esse cristalizado imaginário ao crivo de um agônico recorte crítico. A artista não ignora o papel da iconografia artística na construção/subversão dos discursos sobre uma estética nacional e, talvez por isso, vem explorando outras searas para dar a ver a complexidade do tecido artístico brasileiro contemporâneo: daí a sua militância também no campo da curadoria, no qual se destaca o comissariado do núcleo de arte brasileira da Kunstmesse, realizada em setembro de 2013 no espaço Postbahnhof de Berlim, mostra internacional que é, hoje, referência na cena artística independente.

94 - Dankeschön - 20x20cm - 2013

[Líria Varne, Dankeschön, da série Coisas incríveis acontecem, técnica mista s/ canvas board, 20 x 20 cm, 2013]

               Não obstante, essa insolúvel dialética entre o local e o universal ajusta-se à dimensão cosmopolita da sua criação plástica. A escala doméstica de alguns dos seus mais recentes trabalhos, que reincidem nos vinte por vinte do canvas board, parece agregar o grafismo da azulejaria ao seu leque de referentes estéticos. Na mesma medida, a sua investigação das potencialidades de um suporte marcado pelo comedimento e pela simetria permite-lhe um recorte instantâneo e fragmentado do real, conferindo ao quadro uma espécie de teatralidade imediata. É este o caso do irretocável Dankeschön, da série Coisas incríveis acontecem, também da safra mais recente.

Outro exemplo paradigmático da poética varneana repousa em Subviver em São Paulo, de 2012, acrílico sobre tela exposto no Salão de Outono da América Latina, realizado na Aliança Francesa de São Paulo em maio de 2013. A já aludida tensão entre o real e o imaginário, ou entre o eu e o mundo, faz da pintura de Líria Varne um universo cristalino e fabuloso, que, a despeito do discurso crispado do qual não abre mão, cativa o espectador ao convidá-lo a uma realidade estranhamente confabulada. Realidade que desvela, na expressão plástica, aquilo que a secura dos dias tanto se esforça por silenciar.

[Granada, dez. 2013]

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[1]    Pesquisador de pós-doutorado no Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra [Linha de Semântica e Pragmática da Arte] e colaborador do Programa de Postgrado en Teoría de la Literatura y del Arte [Universidad de Granada].

[2]    Wölfflin, H. “Sobre o linear e o pictórico”, em: ________. Conceitos fundamentais de história da arte [trad. João Azenha Júnior]. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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